Setembro, 2020.
Sr. Governador, desde o início do seu mandato e de maneira mais intensa por conta da emergência sanitária, o senhor enaltece a importância da ciência para o desenvolvimento econômico e social, em contraste com outros gestores públicos e com a maré negacionista. Estamos cientes que o momento exige medidas austeras para assegurar o equilíbrio das finanças. Mas é difícil entender o Projeto de Lei 529/2020, proposto e defendido pelo Sr., que tramita na Assembleia Legislativa de SP e que atinge os pilares da produção e financiamento da ciência em São Paulo.
O Sr. sabe que a USP, a Unicamp e a Unesp estão entre as melhores do país. Com a Fapesp, respondem em grande parte pelo sucesso da produção cientifica e das políticas públicas que sustentam o dinamismo do nosso estado. A realidade do sistema de educação superior paulista nasceu após a derrota na Revolução de 1932, quando o estado decidiu construir seu futuro com base no conhecimento e não na força das armas. As universidades são joias que requerem cuidados constantes e não de agressões.
As universidades de Pesquisa vivem de seu compromisso profundo com a excelência do conhecimento. Os valores que cultivamos ajudam a lapidar as lideranças de amanhã, de modo que sejam capazes de lidar com as incertezas do futuro e construir um mundo melhor. A difusão do conhecimento e a formação profissional também fazem parte de sua missão. Cabe aqui destacar a presença da Unesp em mais de 25 cidades espalhadas pelos quatro cantos do estado, cuja atuação contribui para formar profissionais atentos à realidade e ao desenvolvimento local.
As três universidades gozam de autonomia para planejar e gerir suas atividades desde 1989. Exercem essa atribuição com sucesso, apesar do regramento engessado da administração pública.
A proposta do PL 529/2020 de transferir o excedente não utilizado a cada ano para o tesouro estadual comprometerá o planejamento de ações de longo prazo. Ao contrário, o PL proposto pelo Sr. estimula a utilização imediata de recursos, de modo a eliminar as sobras, com grande prejuízo aos processos de longa duração que caracterizam a pesquisa científica.
A Fapesp é exemplo de sucesso mundial entre as agências de fomento. Sua atuação se baseia nas melhores práticas internacionais para a seleção e acompanhamento de projetos científicos e tecnológicos. A principal renda da Fapesp vem do Estado “como renda de sua privativa administração”. Cabe ressaltar que graças à visão do então governador Carvalho Pinto criou-se um patrimônio rentável a partir de uma dotação inicial e as rendas deste patrimônio são recursos da Fapesp previstos em lei. Essa visão do então governador e que garante há décadas a estabilidade das linhas regulares de fomento à pesquisa e de criação de projetos estratégicos, mesmo em situações de instabilidade econômica ou de flutuações de moedas estrangeiras. Os recursos extraordinários alocados nas recentes crises sanitárias da Zica e da Covid-19, ou os investimentos realizados no Projeto Genoma há mais de duas décadas, que colocaram o Brasil entre o seleto clube dos países avançados em biotecnologia, são exemplos de uso desses recursos que complementam o orçamento da Fapesp para ações fundamentais para o interesse público. Isso significa dizer que não há empenho destes recursos, eles garantem a missão regimental da Fapesp, estabelecida em lei.
Caro governador, precisamos da sua ajuda para explicar à sociedade que as universidades são essenciais para transformar conhecimento em riqueza. As empresas não teriam como operar sem os estoques de conhecimentos e o pessoal qualificado e formado pelas nossas universidades. E, sem esses ingredientes, as empresas dificilmente gerarão as inovações relevantes para a economia e a sociedade.
O estado de São Paulo produz quase a metade da produção cientifica brasileira indexada em bases internacionais e cerca de um terço das riquezas do país. A região metropolitana, onde está a USP, a maior e mais importante universidade de pesquisa da América Latina, não dispõe de um Parque Tecnológico, que geraria sinergias entre a criação de conhecimento e sua transformação em inovações pelas empresas. A nossa existência no mercado internacional é insignificante. O Brasil participa com algo em torno de 1% do comércio exterior mundial. A contribuição da produção cientifica brasileira se aproxima dos 3% (três vezes mais do que a participação em transações comerciais). A nossa economia é muito fechada, a mais fechada do G20, e é voltada para o consumo interno que exige pouca competitividade e, por isso, não é capaz e não tem incentivos para utilizar o estoque de conhecimento produzido na universidades e institutos de pesquisa.
A ciência e a tecnologia impactam também a economia madura e diversificada do Estado composta pelas indústrias automobilística, têxtil, química, aeronáutica e de informática, que precisam se tornar mais competitivas. O asfalto ou as redes ferroviárias que foram as alavancas de progresso do passado, hoje são representadas por sofisticada infraestrutura de tecnologias de informação assistidas por inteligência artificial e sistemas de automação. O sistema financeiro, agropecuário e da saúde são nichos de oportunidade para intervenções estruturadas de ciência e tecnologia, voltadas para gerar serviços mais eficientes e produtos de maior valor agregado. Há oportunidades para reinventar o mundo quando se pensa nas áreas de energia, logística e mobilidade urbana, segurança pública, habitação, manejo do ambiente e do clima e promoção da saúde individual e populacional. As secretarias de Estado podem ser catalizadores de algumas destas iniciativas e atrair as empresas na busca de soluções inovadoras. O modelo dos Centros de Engenharia de Pesquisa Inovação e Difusão (Cepid-Fapesp) agrupa pesquisadores de universidades, Institutos e Empresas co-financiados por estas instituições e poderia também ter a participação das secretarias de Estado. O mesmo modelo também serviria para aproximar grupos interdisciplinares das universidades que fazem abordagens analíticas para subsidiar políticas públicas ou priorizar ações governamentais.
Sr. Governador, é imperativo o reexame de sua proposta contida no PL 529/2020. Há muito a ser realizado e melhorado no estado de São Paulo. Por que mexer no que funciona e comprometer o futuro?
JOSÉ EDUARDO KRIEGER é professor titular de Genética e Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), onde também é diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração do Hospital da Clínicas (Incor/HC-FMUSP). Graduado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (1984), doutor em fisiologia pelo Medical College of Wisconsin (1988), pós-doutor em biologia molecular pelas universidades Harvard (1990) e Stanford (1992) e livre-docente pela USP (1996), é membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo e foi pró-reitor de Pesquisa da USP (2014-2017).