Por Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora da Rede de Pesquisa Solidária
Em vários momentos da pandemia, como mãe, tenho me indagado sobre os inúmeros dilemas deste momento para as crianças. Sabemos que esta experiência está causando tanta dor, sofrimento e perdas em todos, mas nossos filhos são os que estão perdendo sua infância. Aos meus filhos, mesmo não sendo tão pequenos, ainda vejo que esta violenta pandemia está impondo um amadurecimento forçado. Não há escolhas fáceis, e as conversas com eles ao longo destes 12 meses têm sido caracterizadas por questionamentos intensos e discussões que, mesmo como cientista social que entende a política e seu papel determinante na vida dos indivíduos e a sociedade, me deixam sempre pensando que esta é uma conversa que não deveria estar tendo com uma menina de 10 anos, um menino de 13 e um adolescente de 15 anos. Nesta terça-feira, tive que ter uma dessas conversas logo depois de receber uma ligação da escola, que o professor de Ciências tinha falecido de covid-19, aos 39 anos de idade. O mundo parou e minha alma quebrou.
Temos passado tantos momentos duros nesta pandemia. No início, quando a minha filha reagiu organizando uma campanha “Fique em casa e salve a vida dos avós”, se engajou em fazer uma diferença e ficou em casa aderindo estritamente aos protocolos, mas também como aluna do quinto ano de uma escola estadual de São Paulo, ficou sem aulas. Enquanto seus irmãos maiores que estudam em uma escola particular tiveram aulas remotas desde a terceira semana de março, ela ficou em casa de “férias”. Estudou sozinha, leu muitos livros e perdeu a comunicação com os amigos tão queridos. Quando se iniciaram as aulas remotas em maio, foi um período muito difícil de adaptação. Após as primeiras semanas, desistiu de assistir às aulas na televisão. Nas semanas subsequentes, confessou que o conteúdo estava distante de sua experiência como aluna numa escola. Eram 45 minutos de aula e 45 minutos de programas infantis de TV. Como professora que se preocupa com o ensino na universidade e que pratica o ensino baseado no aprendizado ativo, compreendia perfeitamente seu incômodo. Finalmente concordamos que o melhor para ela seria deixar a escola, a escola onde ela tinha um compromisso muito importante, como presidente do grêmio; ela deixava um lugar que sempre a acolheu, afirmou sua liderança e a desafiou para aprender igual que foi a experiência de seus irmãos.
No segundo semestre de 2020, passamos a nos adaptar ao ensino remoto para as três crianças numa escola privada. A rotina é puxada. Aulas de manhã com cinco minutos de recesso, e eles fixos no computador a manhã inteira. A minha filha conseguiu se adaptar. O meu filho adolescente me confessou que gostava mais da escola remota do que das aulas presenciais. Ele se concentra melhor e as aulas são mais focadas no conteúdo. O meu segundo filho, que gosta mais de esportes, sente falta de jogar na quadra. Ganhamos no ensino, mas a leveza de brincar com outras crianças, de rir espontaneamente, de estar cansados de correr foi outra das inúmeras perdas da pandemia.
Ao se iniciar 2021, percebemos que seriam novamente longos meses aqui em casa mantendo a quarentena. Resolvemos não voltar às aulas presenciais e continuar estudando de modo remoto no início desta experiência de ensino híbrido que inaugurou a escola. Como estudiosa da pandemia e das respostas dos governos, havia mais do que suficiente evidência para não voltar presencialmente. De acordo com as normas do Centers for Disease Control dos EUA, as comunidades com casos em excesso de mais de 100 casos por 100.000 e/ou 10% de taxa de positividade são consideradas como indicadores de alto risco. Nesses contextos, o CDC orienta: “Schools that are open for in-person instruction (either fully open or hybrid) may decide to remain open even at high (red) levels of community transmission. These decisions should be guided by information on school-specific factors such as mitigation strategies implemented, local needs, stakeholder input, the number of cases among students, teachers, and staff, and school experience. A decision to remain open should involve considerations for further strengthening mitigation strategies and continuing to monitor cases to reassess decisions. This should be driven by a ‘classroom-first’ approach; in-person instruction should be prioritized over extracurricular activities including sports and school events, a common source of school transmission, to minimize risk of transmission in schools and protect in-person learning”. Ao mesmo tempo, entendo que a decisão é difícil. Há crianças que não têm como participar do ensino remoto por não ter acesso à internet em casa. Estas crianças chegam a ser aproximadamente 30% das famílias no Brasil de acordo com o NIC.br. Há crianças passando fome e com problemas de depressão. Há pais deixando crianças sozinhas porque precisam trabalhar.
Nas primeiras semanas acompanhamos a abertura da escola com grande preocupação. Desde a abertura, foram dois casos positivos entre os professores. Destes, o segundo caso foi o professor de Ciências que uma semana depois dos sintomas chegou a óbito. Pai de duas crianças, ele ensinava em três escolas, duas privadas e uma estadual, e este professor ensinou meus três filhos. Era humilde, gentil e de poucas palavras, mas sempre sorrindo quando falava para mim sobre meus filhos nas reuniões de pais. Meu filho mais velho hoje estuda ciências, e grande parte de sua formação em ciências foi semeada por esse professor no ensino fundamental. Nunca tivemos a chance de agradecer. No dia seguinte à morte do professor, meu filho de meio perguntou aos professores o que pensavam sobre o que tinha acontecido e sobre este momento. Em suas perguntas, conclamavam tantas dúvidas e tantas respostas que na verdade não conseguiam ser respostas. Tanto silêncio de nós adultos será necessário para ouvir as crianças. A guerreira da família, a mais nova, me disse duas coisas que jamais vou esquecer. “Mãe, na última aula antes de ele se afastar, ele falou que estava superanimado para começar a estudar a nova matéria, explicando que era uma de suas favoritas”. A segunda foi uma pergunta sobre os outros professores. “Eles estão bem, foram testados? O que vai acontecer com eles?”
E assim iniciamos um novo capítulo da pandemia. Meus filhos hoje não são as mesmas crianças do início da pandemia. Houve inúmeros aprendizados, e encontraram pouco a pouco suas próprias vozes. O que fica? A resiliência. Crianças que escutam, leem, questionam e produzem suas próprias conclusões sobre a gestão (ou quase sempre a falta de enfrentamento) desta pandemia. Crianças que cantam, tocam músicas, dançam. Crianças, já não mais tão inocentes, que são testemunhas.
Texto publicado no Jornal da USP em: https://jornal.usp.br/artigos/a-proxima-aula/