Apagão de dados na pandemia

No momento em que Brasil e EUA disputam qual país perde mais vidas para a Covid-19, é mais importante do que nunca explicar as razões da tragédia. Para cada uma das 100 mil vítimas, para cada família que chora sua perda e para cada um dos quase 3 milhões de infectados, a explicação precisa ser clara e transparente. Exatamente o que não temos da parte de nossos governantes.

Após mais de seis meses estudando a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais, estou convencida de que o motivo principal é falta de liderança nacional. A reação frágil do Brasil tem raiz na falta de ação política, visão e coordenação. Para isso, informação é essencial, mas não qualquer informação. Para combater um inimigo como a Covid-19, é preciso informação aberta, compartilhada em todos os níveis de governo e transparente para a sociedade. O problema que nos persegue, como o vírus, é a falta de padrão. Desde março, nossa Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade pesquisa todos os dados disponíveis em sites públicos. Relatamos semanalmente nossos levantamentos e frequentemente deparamos com informações inconsistentes, incompletas e pouco acessíveis. Há exceções, mas as lacunas permanecem gigantescas.

Exemplo marcante são os dados sobre testagem. Ainda hoje, ao navegar pela página oficial do Ministério de Saúde, não se encontram dados sobre o volume e o tipo de testes realizados, notificados ou processados. A responsabilidade por essa situação é do governo federal, que precisa ser transparente e informar a população sobre a gravidade da pandemia e definir as estratégias para minimizar os danos.

Governos estaduais, como o paulista, recentemente começaram a divulgar dados mais detalhados (com taxa de positividade de testes RT-PCR e testes rápidos). Mesmo iniciativas como essa estão longe de oferecer as informações necessárias ao enfrentamento do vírus. A forma como a informação é publicada não permite compreender as razões que levam o estado a apresentar uma taxa de positividade elevada (33% do total de testes RT-PCR; ante 5% esperados, se a testagem tivesse alcançado a população com maior abrangência, como sugerido pela OMS ). Também não permite entender se os casos relatados foram de pessoas atendidas pela rede hospitalar pública, privada ou se foram casos mais leves. Bancos de dados deveriam ser integrados para que as informações contribuíssem para entender a evolução da pandemia. O que existe são dados parciais e fragmentados. Mesmo quando um governo estadual procura dar mais transparência, temos mais um banco de dados isolado, que não dialoga com outros.

O período entre a data da realização do teste e a data de notificação do resultado ao paciente é essencial para avaliar se o tempo é suficiente para o tratamento adequado. A recomendação é que os resultados não demorem mais de dois ou três dias. Com dados detalhados sobre tipo de teste, idade, cor, CEP e sexo, seria possível identificar as regiões de surto com maior infecção. Isso permitiria planejar adequadamente a volta às aulas ou a retomada das creches, mesmo que a manipulação de dados pessoais exija cuidados.

É certo que a produção desse tipo de informação depende de recursos e capacidade, mas, antes de tudo, depende de decisões políticas. A existência de um Sistema Único de Saúde organizado de maneira hierárquica, com participação dos governos federal, estaduais e municipais, deveria ajudar. Países como Argentina, Coreia do Sul e Colômbia, mesmo não dispondo de uma estrutura como o SUS, divulgam dados detalhados, que permitem o engajamento da população, a execução de estratégias inteligentes de rastreamento de contatos e isolamento de doentes — e também ajudam a sociedade a entender os riscos para os mais vulneráveis.

O Brasil chegou a 100 mil mortes. É fundamental agir com precisão e urgência para evitar a marca dos 200 mil. A sociedade precisa exigir mais eficiência dos governos. Isso passa pela oferta de informação transparente sobre como recursos públicos são alocados no combate ao vírus. Prestação de contas e transparência são direitos da sociedade. Não podemos aceitar ou permitir que os gestores decretem flexibilizações sem evidências ou com base em dados desconhecidos. O impacto da Covid-19 nos ensina, ainda que por via trágica, o valor da transparência e da informação.

Lorena Barberia é professora do Departamento de Ciência Política da USP e coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade