Associação entre Vulnerabilidade Socioeconômica e a Intensidade dos Esforços de Testagem SARS-CoV-2 nas Estratégias de Vigilância da Saúde Pública no Estado de São Paulo: Um Estudo Observacional

A testagem das pessoas infectadas por SARS-CoV-2 é central para o controle da pandemia. Num artigo recentemente submetido como preprint, analisamos a intensidade dos esforços de testagem RT-PCR realizados pelo sistema de saúde pública no estado de São Paulo, epicentro da pandemia COVID-19 no Brasil, e sua associação com as vulnerabilidades socioeconômicas do estado.  

Nessa análise, desenvolvemos um Índice da Intensidade dos Esforços de Testagem RT-PCR (RT-PCR IIET) para capturar esses aspectos. O Índice é composto por sete indicadores: (i) Alcance de metas diárias de testagem; (ii) Taxa de positividade para testes RT-PCR; (iii) Tempo de processamento do teste até a divulgação dos resultados (coleta da amostra até parecer); (iv) Capacidade de processamento de testes RT-PCR por laboratórios públicos locais; (v) Testagem repetida de indivíduos; (vi)  Percentual de casos entrevistados para identificação e listagem de contatos; (vii)  Qualidade dos dados sobre testagem RT-PCR. O Índice atribui escores que variam de 1 à 18, que foram redimensionados para uma escala 0 à 100.

As unidades espaciais de análise foram os Departamentos Regionais de Saúde (DRS) que foram avaliados de acordo com dados públicos de testagem RT-PCR anônimos. 

Neste estudo observacional de corte transversal (cross sectional) foram utilizados modelos de séries-temporais para analisar a associação entre o RT-PCR IIET no estado de São Paulo e nos 17 DRS e as seguintes variáveis: i. tendências temporais, ii. proporção da população vivendo sob condições de alta vulnerabilidade socioeconômica, iii. dependência do sistema público de saúde (SUS), iv. renda per capita e, v. densidade populacional. O período analisado consistiu nas semanas epidemiológicas 10 à 35, ou seja, entre o início de março e o final de agosto de 2020. 

Os  dados utilizados, referentes às amostras coletadas para testagem RT-PCR conduzida por laboratórios públicos e o número de novos casos diários confirmados de COVID-19 (leves e graves) , foram obtidos junto ao Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI) da Secretaria de Saúde do estado de São Paulo. No caso do testes por RT-PCR, o SIMI oferece informações sobre o número de exame RT-PCR realizados na rede pública de laboratórios para pacientes hospitalizados e ambulatoriais. 

Ao analisarmos as fontes de dados públicos, o SIMI, não encontramos dados disponíveis referentes a três indicadores: (iii) tempo de processamento dos testes até a divulgação do resultado (coleta da amostra até parecer); (v) testagem repetida de indivíduos; (vi) percentual de casos entrevistados para identificação e listagem de contatos. Por este motivo, todos os DRS receberam escore zero para esses indicadores. 

Os resultados obtidos apontam para uma redução na intensidade dos esforços de testagem com o avanço da pandemia no estado de São Paulo. Em média, o valor máximo para o RT-PCR IIET foi de 47.07 na 11ª semana epidemiológica, no início da pandemia no estado. Na 25ª semana, o escore havia sido reduzido à 17.65. Através do modelo de série temporal utilizado, constatamos uma redução semanal do RT-PCR IIET significativa (p-valor=0.000, 95% IC -1.055; -0.857). Ademais, também foi identificada uma associação negativa entre a vulnerabilidade socioeconômica e o RT-PCR IIET  (p-valor=0.000, 95% IC -0.333, -0.101), de modo que nos DRSs com maior proporção de populações vivendo em cenário de  vulnerabilidade socioeconômica a intensidade de testagem por RT-PCR foi menor. O mesmo foi identificado em relação às DRS onde há maior proporção de pessoas dependentes do do sistema público de saúde(SUS), havendo menor esforço de testagem (p-valor= 0.000, 95%  IC -0.243, -0.077). Finalmente, houve associação positiva entre o índice de intensidade de esforço de testagem RT-PCR e  a renda per capita dos DRS (p-valor=0.000, 95% IC 0.010; 0.020). 

Adotando o DRS 1 (Grande São Paulo) como referência, os DRS V (Barretos) (p-valor=0.000; 95% IC -11.721; -4.091), VIII (Franca) (p-valor=0.000; 95% IC -11.080; -3.450), XII (Registro) (p-valor=0.000; 95% IC -12.361; -4.732), (São João da Boa Vista) (p-valor=0.000; 95% IC -10.866; -3.237), e (Taubaté) (p-valor=0.000; 95% IC -11.080; -3.450) apresentaram os menores valores para o RT-PCR IIET.  

Em nossa análise foi constatado que a presença de laboratórios públicos locais é uma fator preditivo relevante para escores mais elevados de intensidade dos esforços de testagem por RT-PCR nos laboratórios públicos do estado de São Paulo. De modo que  as desigualdades na capacidade laboratorial de processamento e realização de testes afetam, em grande medida, o potencial de vigilância epidemiológica durante a pandemia de COVID-19. Vale ressaltar que este indicador teve o maior impacto nas notas finais recebidas pelos DRS. 

De maneira geral, os esforços nas diferentes localidades foram bastante heterogêneos e permaneceram em sua totalidade abaixo do recomendado pela OMS e pelo CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos), além de desviarem das boas práticas adotadas em outros lugares. Um exemplo foram os resultados referentes às taxas de positividade de RT-PCR, visto que estas se mantiveram acima de 5%, no decorrer de todo período analisado.

Dado nosso esforço de acessar os esforços de testagem RT-PCR nos laboratórios públicos, nosso estudo ressalta o papel instrumental do SUS na redução das desigualdades. Em pandemias, medidas de contenção devem ser guiadas pelas características do contexto pandêmico e pela capacidade dos sistema de saúde nas diferentes localidades. O SUS, como tem sido estruturado nas últimas 3 décadas, permite que as municipalidades e os DRSs adotem estratégias distintas para testagem, identificação de casos, isolamento de pessoas infectadas, rastreamento de contato e quarentena. A melhoria da capacidade de testagem para diagnóstico de casos positivos de COVID-19  e a autonomia dos DRS para modificar as medidas de controle e vigilância requer a adoção, pelos governos estaduais e federal, de políticas alinhadas com essas demandas, o que não foi observado até o final do mês de agosto de 2020.