Desde o dia 3 de junho, a divulgação da atualização diária dos casos confirmados e dos óbitos decorrentes de Covid-19 no Brasil se transformou em uma polêmica e em mais uma rusga política do presidente Jair Bolsonaro. Naquele dia, os jornalistas foram informados de que a atualização diária, antes feita por volta das 19h, seria divulgada “excepcionalmente” às 22h. No dia seguinte, quinta-feira, os dados novamente só foram divulgados às 22h. Na sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista, que não ia mais ter “matéria no Jornal Nacional”, dando um caráter político, de retaliação à imprensa, ao novo horário de divulgação. Junto com a mudança de horário, o governo alterou a forma como os dados eram divulgados e passou a informar apenas o saldo do dia, sem os números acumulados. Na terça, 9, o governo voltou a publicar o histórico dos dados, após pressão da sociedade, da comunidade científica, da imprensa, do Congresso e do próprio Supremo Tribunal Federal (STF).
A transparência de dados é a base de qualquer política pública. Sem eles, é impossível estabelecer evidências e definir qual a melhor política pública possível. Mas há dados, e dados. A polêmica criada pela decisão do governo (já revertida) em primeiro retardar a atualização de dados e depois restringir à informação aos novos casos diários, sem o histórico, esconde um problema igualmente sério. A qualidade dos dados que o Brasil está recolhendo, organizando e usando para definir as políticas públicas de combate à pandemia do Covid-19 está muito aquém do que foi feito nos países que foram mais eficientes no combate à pandemia. Em outros países, os governos acompanham e fornecem dados individuais (sempre preservando a identidade dos envolvidos) sobre cada caso, explicando o que aconteceu, a idade, quais os sintomas, onde, como e quando a pessoa foi testada. Esse acompanhamento segue, especificando as entradas e saídas no sistema de saúde e também os óbitos. Por trás deste detalhado mapeamento está a convicção de que conhecer o desenvolvimento da epidemia é a melhor forma de combatê-la. A transparência dos dados, e sua avaliação e análise por diferentes tipos de cientistas, permite o avanço coletivo em direção à compreensão do fenômeno. Essa é a base da boa política pública.
Desde o começo da pandemia há um esforço dos gestores públicos em melhorar a qualidade das informações fornecidas, que precisa ser reconhecido. Esse compromisso fica claro no trabalho feito por governos estaduais e municipais no sentido de ampliar e melhorar a qualidade das informações fornecidas. A Open Knowledge Brasil construiu o Índice de Transparência da Covid-19 para avaliar a qualidade dos dados relativos à pandemia, que considera tanto o conjunto de dados fornecidos como a forma como eles são disponibilizados. Na primeira semana de abril, apenas um estado (Pernambuco) obteve classificação de “alta transparência” enquanto nove foram classificados como de “baixa transparência”, e 11 como “opacos”. Na segunda semana de junho, o avanço já era claro: 20 Estados (que precisam do apoio dos municípios nesse mapeamento) alcançaram nível alto, enquanto outros quatro foram classificados como bom e três como médio. Nenhum estado foi considerado de “baixa transparência” ou opaco. E o governo federal, que na primeira semana de junho estava escondendo os dados, voltou a liberar as informações e também foi classificado como de alta transparência.
Apesar deste esforço, bem-vindo e que precisa ser reconhecido, ele ainda é insuficiente. Há um problema com as bases de dados disponíveis. Elas apresentam dados às vezes contraditórios e sobrepostos. Às vezes, um mesmo governo disponibiliza dados divergentes. No Estado de Goiás, por exemplo, há duas bases de dados para compilação dos casos. Em uma delas, a primeira vítima fatal de Covid-19 no Estado foi registrada no dia 26 de março, referente a uma senhora de 66 anos; em outro, a data do primeiro óbito é 31 de março e a vítima um homem de 86 anos. Se o objetivo dos dados é mapear o desenvolvimento da epidemia, a diferença nos registros é significativa. Como mostrou nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária de Políticas Públicas e Sociedade, não há informações claras sobre o número de leitos de UTIs de COVID-19 . Enquanto dois estados, Rio de Janeiro e Tocantins, não apresentavam nenhum dado sobre o número de leitos de tratamento intensivo de Covid-19 em suas plataformas, apenas cinco estados apresentavam o número de leitos UTI Covid do SUS e do sistema privado.
Quando existem problemas com os dados (e em outros momentos também), os governos deveriam buscar apoio da comunidade científica. Nesta pandemia, no mundo todo, cientistas estão fazendo, desde o começo, um esforço inédito para estudar esse novo coronavírus e apressar as respostas que ajudem a combatê-la. No Brasil, só para citar alguns esforços, temos o painel de cientistas da Fiocruz, a Rede CoVida, no Nordeste, o Observatório Covid-19, a Antenna-Covid-19, o Coronacidades, a Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade, o Brasil.io (de voluntários que mapeiam desde março os dados de Covid-19 por município), o consórcio montado pelos principais jornais do país para coletar de forma paralela ao Minsitério da Saúde os dados de casos e óbitos, e o Monitor de Evidências do Covid-19, recém-montado pelo FGV Clear.
O papel da comunidade científica é questionar, avaliar e cruzar diferentes bancos de dados. Mas o governo, ao retirar informações e questionar a ciência, está perdendo esse aliado. Felizmente, o compromisso da comunidade acadêmica, científica e da imprensa com a transparência e a informação correta fala mais alto.
Bons dados e disponibilizados de forma transparente é um problema que sempre existiu. Mas nesse momento, todo esforço que puder ser feito para melhorar a quantidade e qualidade das informações no curto, médio e longo prazo deve ser feito. É com eles que vamos ajudar a salvar vidas.