A Proteção Social na pandemia do Covid-19: adaptações e inovações

Introdução

Em cenários de crise e instabilidade, sistemas de proteção social exercem papel ainda mais importante na proteção de seus cidadãos. As medidas de isolamento social, essenciais para o combate do coronavírus[1], têm impactado milhões de trabalhadores e famílias[2] e desafiado a capacidade do Estado brasileiro em evitar o agravamento da pandemia na questão social[3]. Neste texto apresentamos brevemente o que mudou (ou não) nas políticas existentes – como a Previdência, o Benefício de Prestação Continuada e o Seguro Desemprego – as principais características dos programas emergenciais adotados – como a Renda Básica Emergencial o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. O quadro ao final resume as principais informações.

A arquitetura da Proteção social no Brasil

A proteção social no Brasil está ancorada em políticas garantidas pela Constituição de 1988. A Carta consolidou três grandes sistemas que, em conjunto, formam a Seguridade Social. São eles: a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde. A Saúde, peça fundamental no combate à pandemia, tem no Sistema Único de Saúde (SUS) a universalização do direito à saúde, prestando atendimento aos cidadãos independentemente de qualquer condição prévia. A Assistência e a Previdência, por sua vez, dedicam-se a grupos específicos. A Assistência é voltada para indivíduos que se encontram em situação de pobreza ou outro tipo de vulnerabilidade social, como o Bolsa Família. Já a Previdência confere benefícios mediante uma contrapartida anterior, a chamada contribuição previdenciária. Para ter acesso aos benefícios de aposentadoria, pensão e auxílios, entre outros pré-requisitos, os indivíduos devem contribuir regularmente ao INSS.

Em fevereiro de 2020, o INSS pagou 30,8 milhões de benefícios previdenciários, dos quais 18,3 milhões tinham valor igual a um salário mínimo – piso estabelecido pela Constituição. Sem contribuição previdenciária, porém, o acesso a tais benefícios é limitado ou mesmo inexistente. O Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, circula entre a Previdência e a Assistência: destinado a idosos (maiores de 65 anos) e portadores de deficiência pobres, o BPC funciona como uma aposentadoria não contributiva, no valor de um salário mínimo. Em fevereiro de 2020, cerca de 4,6 milhões de pessoas recebiam o BPC.

A proteção social também se estende ao mercado de trabalho, principalmente através do seguro desemprego. Assim como a Previdência, trata-se de um benefício que depende de contribuição prévia e, sobretudo, da existência de vínculo empregatício formal. E, dentre esses trabalhadores, apenas para aqueles que estiverem empregados por um tempo mínimo e que tenham sido dispensados sem justa causa*. Em um mercado de trabalho onde a informalidade representa 40% dos ocupados, a cobertura do seguro desemprego é bastante limitada.

As adaptações do sistema de proteção social com o advento da pandemia

Para os benefícios anteriores à pandemia, a implementação tende a seguir o rotineiro, com algumas alterações. O BPC teve seu critério de renda temporariamente aumentado, de ¼ de salário mínimo para até ½ salário mínimo. Os auxílios doença podem ser emitidos sem a necessidade da perícia médica do INSS – por ora, um atestado médico é suficiente. A fila do Bolsa Família, antes reportada em  mais de 1 milhão de famílias, foi zerada com a Renda Básica Emergencial (ver seção seguinte) e 95% dos beneficiários do PBF  devem receber o novo benefício (os outros 5% não serão incorporados porque já recebem benefício do PBF em valor superior ao estipulado pela RBE). No campo da previdência, as mudanças antecipam benefícios a uma parte já coberta da população (em torno de 33 milhões de beneficiários do INSS). O seguro desemprego, por outro lado, permanece inalterado desde 2015.

No âmbito do mercado de trabalho formal, a principal adaptação é a possibilidades de saques adiantados do FGTS visando conceder um adicional temporário de renda. Por outro lado, não houve mudanças nas regras para acessar o seguro, inalteradas desde 2015.

As inovações do sistema de proteção social com o advento da pandemia

A Renda Básica Emergencial

A Renda Básica Emergencial foi desenhada para cobrir aproximadamente esses 40% de trabalhadores não elegíveis aos benefícios contributivos, abarcando informais, autônomos e microempreendedores individuais com renda familiar per capita de até ½ salário mínimo, ou renda familiar total de até três salários mínimos. Em abril, enquanto estudo publicado pelo Ministério da Economia previu a concessão de 54 milhões de benefícios, estudo anterior realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada identificou 59 milhões. Nossa mais recente estimativa é de 60,7 milhões de potenciais beneficiários.

Discrepâncias na identificação dos elegíveis são um dos primeiros obstáculos na implementação bem sucedida da RBE. Infraestrutura, coordenação entre atores envolvidos em distintas etapas da implementação e expertise da burocracia de assistência social já existente também são cruciais.   

A capilaridade do sistema de proteção social que poderia ser um trunfo de implementação, especialmente através dos CRAS não foi utilizada. Alternativamente, a Caixa Econômica Federal tornou-se responsável por administrar os pagamentos e de cadastrar os solicitantes via aplicativo. Embora o uso de celulares e aplicativos tenha se tornado comum no país, o acesso à internet e mesmo o manuseio do aplicativo são obstáculos aos estratos mais pobres e menos escolarizados. Desta forma, problemas na regularização de documentos, cadastros incompletos e o não pagamento de benefícios aprovados dentro do prazo informado pela Caixa (três dias úteis) [4], têm ocorrido frequentemente nas últimas semanas [No nosso Boletim 5 apresentamos os principais problemas de cobertura e implementação da RBE].

O Programa Emergencial de Preservação do Emprego (formal) e da Renda (MP 936)

O Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (MP 936) reduz custos diretos das empresas, estimulando que empregadores e empregados entrem em acordo para redução da jornada de trabalho e do salário. A redução pode ser de 25%, 50% ou 70%, por até três meses. Pela lei, o valor do salário-hora deve ser mantido — o que significa que uma redução de 25% da jornada implicará em redução de 25% do salário mensal e assim por diante. O governo então concede um benefício complementar, baseado no valor de Seguro Desemprego ao qual o trabalhador teria acesso, dado seu nível de renda (ainda que não cumpra outros requisitos do Seguro Desemprego, como número de contribuições e tempo de emprego formal). Sob uma redução de 25% da jornada, o trabalhador receberá 75% de seu salário original e 25% do valor equivalente ao seguro que teria direito — e assim por diante.

Pequenas empresas (com receita bruta inferior a R$ 4,8 milhões) podem suspender os contratos de trabalho por sessenta dias. Nesse caso, o trabalhador recebe, durante o período, um benefício equivalente a 100% de seu seguro desemprego, pago pelo Governo. As empresas com faturamento superior àquele valor, em caso de suspensão dos contratos, devem arcar com 30% do salário, complementados então com 70% do Seguro Desemprego.


*O tempo mínimo para solicitação do seguro desemprego tem a seguinte regra: pelo menos 12 (doze) meses nos últimos 18 (dezoito) meses imediatamente anteriores à data de dispensa, quando da primeira solicitação; pelo menos 9 (nove) meses nos últimos 12 (doze) meses imediatamente anteriores à data de dispensa, quando da segunda solicitação; e cada um dos 6 (seis) meses imediatamente anteriores à data de dispensa, quando das demais solicitações.